A dança sem alma e a sensualização do deboche

Diegho Salles de Brito
8 min readJun 16, 2021

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Dançar é uma potência ancestral humana da qual somos todos dotados, não importam as limitações e diferenças que cada pessoa carrega. É o que dizem os grandes bailarinos, coreógrafos e profissionais. Não há certo e errado na busca da manifestação do movimento através do corpo humano. Dançar é reconectar-se com a consciência não tematizante, uma manifestação que pode ser tanto espontânea e irreflexiva quanto coreografada, ensaiada e calculada. Dançar é uma celebração das mais diversas emoções que nos habitam, é um ato que vai da gratuidade do jogo ao transe ritualístico, passando pela contemplação, autoconhecimento, terapia, esforço, meditação, chegando até à criação artística, que compreende e abarca em si um pouco de cada uma dessas dimensões. A criação artística é o que define a distinção entre o ato pura e simplesmente e seu derramamento no tempo-espaço, seu desdobrar-se sobre si mesmo e sobre todas as coisas, é o estado lúdico do deleite transcendendo-se a si próprio e se tornando uma outra coisa.

A instância poética de uma obra é o que lhe confere o estatuto de arte. Ela não tem serventia, no sentido utilitário da palavra, não é algo que se use para uma finalidade definida e restrita. Como disse o poeta “é o belo sem o qual a vida não valeria à pena. ” E tudo isso se dá na infinita dinâmica da alteridade, dos múltiplos refletidos-refletidores que somos cada um de dentro de nossa individualidade face ao outro. Buscamos nos imitar e nos diferenciar a todo instante, nos reconhecemos e nos estranhamos a todo instante. E por mais precisos e parecidos que possamos nos tornar, seguimos únicos. Cada um com suas digitais, seus olhares, suas andaduras, suas posturas, suas respirações, seus tamanhos e pulsações, seus silêncios. Únicos. A sincronia e unidade máxima que somos capazes de atingir nos revelam essa verdade. E como é bela. Como é desejável nos percebermos semelhantes, porém nunca idênticos. Não é preciso dançar bem ou dominar a técnica de uma ou mais escolas para se reconhecer como um ser dançante e pleno dentro de suas próprias capacidades. Penso na consagrada frase que diz “dance como se ninguém estivesse olhando” e na liberdade que este convite/provocação carrega em seu bojo. É uma ideia realmente fascinante, contudo, reconhecer que essa força motriz existe não dá chancela a ninguém para ignorar deliberadamente tudo que o gênio humano foi capaz de desenvolver estudando nosso mais precioso instrumento: o corpo. Instrumento da razão e razão do instrumento, porque o corpo não é uma mera ferramenta à serviço do cérebro e suas infinitas conexões neurais, ele é a própria consciência que existe e se realiza nos percursos através dos quais transitam os estímulos, que correm e dançam nos diversos sentidos e vetores, dentro e fora, onde tudo é enquanto. Penso que por isso mesmo é divertido observar alguém brincando. E comovente observar alguém transformando a brincadeira em arte, extraindo outros elementos da subjetividade humana e transpondo-os para esse não lugar onde o belo se materializa e se dissolve sucessivamente. Gozar com o próprio movimento e o movimento alheio não se reduz unicamente à ideia de divertimento, mas de fruição. A complexidade da alma humana nos permite sermos alquimistas de nossas próprias experiências. Fazer de uma perda a sutilíssima contração facial, repleta de gravidade, dor e beleza, é dançar tanto quanto sambar na avenida carnavalesca até desfazer-se em suor. Um erguer de braço atempo pode ser muito mais sublime para um espectador sensível que o virtuosismo acrobático que deixe boquiaberto o espectador mais desatento. Por isso a humildade e o respeito pela tradição clamam que isto seja dito: ser bailante não lhe torna necessariamente um bailarino, assim como ser cantante não lhe torna necessariamente um cantor. São coisas que podem coincidir ou não, e não há problema nisso, desde que se reconheça.

A dança e a pulsão humana de dançar não podem ser limitados, não podem ser taxados por cânone algum, pois se assim o fosse, não teríamos os grandes expoentes dessa arte milenar, nem teríamos também a diversidade de estilos e folclores populares que se engendraram no decorrer das civilizações. Não tenho tal autoridade nem muito menos reivindico-a para mim, mas sei com toda tranquilidade e a certeza que minha sensibilidade foi capaz de me oferecer, que um palco jamais será substituído por qualquer plataforma que seja. Digo e assumo tudo que digo com a convicção plena de que nenhum modismo pode superar, nem mesmo pelo soterramento de tanto entulho que se produz, àquilo que é atemporal. Que vai do ensaio ao camarim, passando pela coxia até o descortinar de um público silente. Não há curso rápido, passo a passo, tutorial, viralização, milhões de seguidores, códigos verificadores ou o que seja que substitua uma vida dedicada ao movimento. Que não se submete à lógicas algorítmicas, que não se submete às fórmulas exaustivamente repetidas e esvaziadas. Não há ilusão coletiva sobre o significado de sucesso que substitua a verdade de uma obra íntegra. É preciso enfatizar sempre que por melhor que seja a propaganda ela nunca será arte, não importa o quão bem produzido seja o “conteúdo”. Não interessa o quanto as pessoas queiram se promover em cima da ideia de serem artistas, se a única coisa que elas fazem é a cópia da cópia da cópia. E malfeita. Sem alma. As artes não cabem nesse reducionismo. À princípio pode parecer inocente e mera brincadeira, mas o que está por trás disso é um silenciamento abusivo de todos aqueles que têm realmente algo a dizer. Plataformizar uma linguagem artística e utilizá-la como um meio para se chegar a um fim é um engano seguido de um autoengano perigoso. Como já disse, a arte não tem uma finalidade objetivamente aferível e não tem que ter. É nesse aparente despropósito que as ambiguidades e interpretações infinitas vingam. Afinal, alguém em sã consciência pode crer que as zilhões de versões da mesma coisa infestando tiktoks e instagrams e seus produtores, pensam estar construindo uma obra artística, um legado para a cultura ou o engrandecimento da experiência humana?

Junto com isso vem a difusão da música ultraprocessada. E ambas as propagandas, mal disfarçadas de arte se retroalimentam e se repetem à exaustão de uma mesmice tão enfadonha que só mesmo as fazendas de robots poderiam alavancar. O efeito de manada faz o resto. A parte principal é capitalismo puro. Fantasias de poder e prosperidade. Ou como diria Thiago Amud “que o refrão é fraco quando o marketing é ruim.” E as pessoas o fazem inconscientemente e involuntariamente. Se amontoam sobre seus próprios amontoados de auto exposição. Creem-se relevantes enquanto infantilizam a sensualidade e a criatividade da expressão humana. E sabe-se o quanto aquilo a que chamamos sensual está intimamente ligado à criatividade humana. De Freud à Fernando Pessoa, de Frida Kahlo à Fred Astaire. O sensual não cabe no erótico. A dança não cabe no tiktok. E é basicamente isso que está se cristalizando no imaginário de bilhões de pessoas, principalmente nas gerações mais jovens que são a maioria nessas redes e que não tiveram como referência, outra vivência que não fosse dentro da dimensão da internet e do digital. Qual seja, uma ideia infantilizada sobre o que é o sensual — dimensão fundamental da subjetividade — que acaba só encontrando expressão através da erotização das “dancinhas” e “coreografias” que se reproduzem à exaustão nessas redes. E quando o padrão de beleza instagram impede a erotização, seja masculina ou feminina, resta o deboche, prontamente assimilado em efeito cascata até que os próprios modelos da beleza padrão o reproduzam também. O que significa um empobrecimento absurdo da criatividade e um apagamento sucessivo do trabalho sério de profissionais. Porque para as pessoas em geral, para o cidadão-alvo da propaganda e publicidade travestida de arte, quantidade é qualidade, se todo mundo consome é bom e é bom porque todo mundo consome. E se algo não é visto e massificado, simplesmente não existe. É claro que eu não ignoro como tudo isso ocorre dentro de bolhas. Obviamente existem as bolhas dos artistas que pesquisam, trabalham, estudam, divulgam, bebem na fonte e produzem com qualidade e compromisso estético, cultural, artístico. Mas eles não conseguem se aperceber dessa encruzilhada, porque estão ocupados demais tentando ser eles próprios trending topics virais pisando o cadafalso que ignoram, armado pelo carrasco que idolatram. Tudo isso acontece simultaneamente em camadas diferentes: a infantilização do sensual, o rebaixamento da criatividade e suas formas de expressão, o deboche estereotipado, a imposição dos padrões “desejáveis” e a confusão entre arte e propaganda.

Eu preferiria não ter de estar dando tamanha importância para este fenômeno, mas diante da completa ausência de crítica e até mesmo capitulação da classe artística, que parece muito mais desesperada em ser assimilada por esta lógica perversa do que em combatê-la, é que grito este alerta. A história se agudiza e se verticaliza sobre nós. A era da internet das coisas e o novo normal imposto pela pandemia só está precipitando absurdamente essas tendências. Tudo é muito rapidamente viralizado (seria este termo recente, mera ironia do acaso?) e esquecido. Não há compromisso com posturas e discursos, é mais fácil apagar um erro ou um sincericídio passado, do que arcar com as próprias incoerências, que obviamente são inevitáveis em vida. E a memória seletiva prospera sempre como narrativa oficial, de acordo com as conveniências. As desonestidades intelectuais se multiplicam e tudo se resume a um Fla x Flu que não acaba aos 45 do segundo tempo. Portanto, eu como remanescente da vida analógica, insisto na pertinência da questão. Eu vislumbro essa distopia da arte sendo completamente absorvida pela propaganda, não só com o consentimento, mas com todo esforço colaborativo e espontâneo de que as pessoas guiadas por estes parâmetros são capazes. Era isso que a Escola de Frankfurt conjecturava ao desenvolver o conceito de indústria cultural. É de dentro desse meu lugar de fala de artista periférico, que eu acuso esse descalabro a que assistimos inertes, contribuindo com nossos cliques, compartilhamentos, engajamentos, rolagem de telas e etc., achando graça de uma engrenagem que premia a falta de autenticidade, que vai aos poucos uniformizando as pessoas mental, estética e emocionalmente.

E o que eu me meto a falar aqui sobre a dança com essa pretensão que não nego, se aplica basicamente à todas as artes e suas formas possíveis. Quanto mais se expandem as conexões e velocidades das comunicações, mais se encolhe o horizonte criativo dos mistérios da subjetividade da alma humana. A ambição destes propaladores de filosofias do bem viver, mercadores da autoimagem virtual, conselheiros do hedonismo e adoradores da ostentação é mesquinha e rebaixada, porque cabe perfeitamente dentro dos parâmetros do capitalismo. E o slogan provocativo que dizia “dance como se ninguém estivesse olhando” subitamente se transformou no seu polo oposto: dance como se literalmente todos estivessem te olhando e como se você soubesse exatamente pelos algoritmos e virais o que manterá esses olhares vidrados em você, ou ao menos na imagem que você projeta de você. E repita a fórmula. Até que você acredite na sua própria fantasia supostamente coletivizada.

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