Democratas

Diegho Salles de Brito
5 min readNov 4, 2020

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Sr. S. como de costume saiu cedo para tomar seu parco cafezinho na padaria da esquina. Foi de sobretudo, bengala, boina e cachimbo.

“Que saudade de fumar meu cachimbo justamente nos lugares em que a lei antifumo proíbe”.

Esse é um pensamento comum para o Sr. S.

Todos os dias ele pensa sobre a tremenda injustiça que é equiparar os fumadores de cachimbo aos reles jogadores de guimbas nas sarjetas.

“Guimba fica melhor que binga. Sem dúvidas que fica.” De Sr. S. para Sr. S.

Na padaria é cortesmente cumprimentado pelos funcionários que lhe sorriem por debaixo das máscaras obrigatórias. Ele retribui com igual sorriso oculto e pensa:

“Que ironia, quando surgiram os black blocs o governo sancionou a Lei Antiterrorismo. Duríssima! Sobretudo com os manifestantes mascarados. Agora subitamente obrigam a todos nós que nos coloquemos na reta dessa terrível lei por nossa própria vontade.”

Outro triste fato que aborrece o nobre Sr. S. é constatar que as pessoas não mais leiam seus jornais nas padarias da esquina enquanto fumam seus cachimbos. Agora as padarias da esquina que têm plaquinhas da Lei Antifumo estão equipadas com TV’s em paredes opostas, para que não importe onde você se sente, você tenha que incontornavelmente olhar para as caixas luminosas na ausência de um grande jornal aberto diante de si. O jornal ocupa espaço nas padarias, as pessoas que não viveram a época de ouro dos cachimbos e jornais nas padarias se incomodam com a abertura necessária dos braços erguidos diante da face que uma correta leitura de jornal exige. Por isso fazem já mais de dez anos que o Sr. S. não compra o jornal na ida, mas sim na volta da padaria da esquina.

O grande assunto do dia é a contagem de votos da eleição presidencial nos EUA. Sr. S. observa os breves comentários de seus comensais de balcão à respeito do tema com aquele ar que se assume quando alguém estranho fala de algum assunto polêmico em um local público esperando quem quer que seja, mas que retruque e definitivamente é melhor não retrucar. Não retrucar, nem pigarrear, mas imperiosamente não assentir com a cabeça para baixo num leve movimento do queixo em direção ao peito. Isso é imperdoável para este tipo. Uma vez que percebam este singelo gesto, são capazes de exprimir a opinião até a última gota e o pior… Te alugam sem te pagar. Afinal de contas, quem precisa de psicólogo diante de um gesto desses?

“Eles votam pelos correios e antecipado!” Disse o sujeito de bermuda jeans e camiseta com o cofrinho lamentavelmente começando a aparecer.

Sr. S. não foi capaz de interpretar a emoção que estava acompanhada dessa sentença, se era indignação, espanto, crítica, admiração… Ao que sucedeu-se um breve silêncio de chapas e bules e facas e fornos em que uma discreta senhorita mantinha o mesmo distanciamento que ele, até que um terceiro retrucou:

“E ainda dizem que nosso sistema é melhor hein, urnas eletrônicas!” Sr. S. também não soube se aquela afirmação havia sido irônica, um chiste, uma provocação ou uma estranha certeza.

“Mas é de se pensar não é? Por tudo somos tachados subdesenvolvidos em relação à eles, tecnologia então nem se fale, mas nós temos um sistema todo digitalizado, realmente, urnas eletrônicas versus correios. É de se pensar. Aliás, onde essas urnas são fabricadas afinal de contas?” Sr. S. refletiu franzindo o cenho de si para si e mantendo todo cuidado para não ser confundido com um aposentado puxador de prosa.

“Eles querem que o D. perca porque acreditam que assim o nosso presidente aqui se enfraquece também. Assino embaixo, tô torcendo pro J. ganhar lá e o B. ficar isolado aqui” disse o cofrudo ávido por moedas e confirmações. Mas o outro rapaz saiu-se com essa: “É uma Hidra de duas cabeças, se uma é vesga e a outra tem mau hálito é só um detalhe. Vão nos comer de qualquer jeito.”

Sr. S. sorriu verdadeiramente por debaixo de sua máscara. “Tem espírito.”

“Então quer dizer que você não defende os democratas? Além de ser contra a maior democracia do mundo ter um líder democrático só falta você me dizer que defende esse puto do B.!” Subiu o tom e ajeitou a bermuda. “Menos desagradável” pensou Sr. S.

“Não amigo, só não acho que faça diferença para nós que aos olhos deles, democratas ou republicanos não importa, somos colônia, somos o backyard nas palavras deles. E francamente nunca acreditei que sejam uma democracia, que dirá a maior do mundo.”

A senhorita pediu a comanda e se levantou para sair. Os dois atendentes do outro lado do balcão se entreolharam levemente preocupados e depois entreolhamo-nos todos com um ar entre concernido, preocupado, curioso e suspenso por alguns instantes que se equilibraram e frearam o pulso daquele momento.

“Rapaz mas você tem coragem de sair defendendo esses absurdos que só ajudam o B.! Você fala isso porque não tem filho! Porque nunca passou uma dificuldade nem precisou do SUS rapaz! Você não sabe o que é isso!” vociferando, já meio em pé ainda meio sentado, só um banco vazio entre eles, o chapeiro arregalado pedindo “calma meus amigos!” e sua voz abafada em meio ao alarido.

“Porque eu me nego a ser o ÓDIO ESPELHADO COMO VOCÊ MEU CAMARADA! EU AQUI NO CASO SÓ ACEITO PENSAR POR MIM E NÃO VAI SER NO BERRO NEM SEM NUNCA TER LIDO UMA PORRA DUM LIVRO QUE ISSO VAI MUDAR!” Sr. S. se espantou com o crescendo de que foi capaz de vocalizar o rapazote que agora ele podia observar com mais clareza.

Foi nesse exato momento que o sujeito de bermuda jeans se valendo de um mero garfo de broa investiu à toda contra o outro que no infortúnio máximo ficou com o casaco preso ao banco e antes que pudesse se desvencilhar foi atingido repetidas vezes por seu contendente que largou tudo no chão e encarou o resultado na TV.

“J. é eleito presidente dos EUA pelos próximos quatro anos, os democratas voltam à Casa Branca nessa que foi a eleição em que mais cidadãos vot…”

Com um sorriso no rosto ele disse olhando para o rapaz agonizante no chão. “Eu falei que era melhor os democratas ganharem!”

Sr. S leu esta notícia no jornal de amanhã, fumando seu cachimbo enquanto tomava café na padaria da esquina de sua rua numa cidade do interior de Minas Gerais. Ninguém se incomodou. Não se falou de política.

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