EM DEFESA DA CRÍTICA

Diegho Salles de Brito
5 min readMar 18, 2021

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Um alarme soou no horizonte brasileiro tempos atrás e quase ninguém percebeu. Era a decadência da crítica. O vácuo deixado pelo desuso do exercício da crítica no cotidiano social foi rapidamente ocupado pelo endosso dos vieses de confirmação cognitiva, ideológica e seus múltiplos reforços. Isso representou um insuspeito abalo para a nossa frágil e jovem democracia liberal, a bem da verdade, mais concedida que conquistada. Antes da crise e seu drástico aprofundamento, as pessoas já eram conduzidas à uma percepção distorcida da realidade, baseada no reforço constante desses vieses e no isolamento do efeito provocado por suas respectivas bolhas. Essa fratura controlada da sociedade brasileira, em grande parte, fruto da nossa história cheia de feridas não curadas nem cicatrizadas, mas também em grande parte instrumentalizada e inflada pela mídia hegemônica e atores internacionais, através de uma sistemática fragmentação do tecido social promovida pela recém-conquistada supremacia das noções de identidade sobre categorias clássicas como nacionalidade e classes sociais, segue um roteiro.

E como se abrem várias possibilidades de autoafirmação, as frações populares subdividem-se em muitos nichos que não necessariamente têm boa interlocução entre si. Me refiro justamente à notável falta de intersecção que vigora entre as próprias bandeiras comumente chamadas minoritárias. O outro espectro se refere àqueles que eram simples populares com hábitos religiosos e culturais mais conservadores, levados ao extremismo por oposição permanentemente reforçada a esses novos grupos que buscam reconhecimento e respeitabilidade social, mas que muitas vezes pecam ao colocar suas demandas não só à frente das urgências comuns à toda classe trabalhadora, como até de maneira desvinculante em relação às mesmas. A meu ver um erro estético-estratégico. Tanto a falta de articulação entre os ditos grupos minoritários e a classe trabalhadora, como sua oposição irrefletida diante de um conservadorismo inerente à considerável parte da tradição popular brasileira que não necessariamente encontra sua expressão no linchamento e nos discursos de ódio, mas que pelo envenenamento da propaganda e da sedimentação desse sentimento de abandono e rechaço públicos (muito mais artificial do que real) acaba aderindo à um extremismo que representa um contrassenso de origem. Ou seja, de um lado pessoas extremamente precarizadas em seus trabalhos, moradias, garantias e direitos básicos, que escolhem reconhecer-se a partir de características que as definem individualmente à despeito disso claramente enfraquecer a defesa das melhorias nas condições outrora conquistadas de maneira coletiva. E de outro lado pessoas igualmente precarizadas em todas essas instâncias, mas que preferem definir suas existências a partir de moralismos religiosos e meritocráticos que servem basicamente para legitimar exceções que obviamente, só confirmam a regra geral de que a pobreza é uma doença congênita a ser combatida explorando e eliminando seus portadores. Fundamental considerar que tudo isso foi sendo alimentado através de redes antissociais e seus diabólicos algoritmos. [A mão invisível do mercado parece ser a mesma que programa tais algoritmos]. Arena fértil para a fulanização dos debates e para o completo descompromisso com a responsabilidade sobre o que se diz e se faz. A negação da crítica a um botão de você, diferente de como as coisas acontecem nas situações da normalidade da vida cotidiana em sua dimensão física. Quando surge um questionamento numa entrevista, numa aula ou numa roda de conversa por exemplo. Ressalto que a defesa que faço da crítica não se coaduna com a relativização de todo e qualquer discurso que gera contradições, do tipo dos que se escoram na tão surrada liberdade de expressão para proferir impropérios e violências. Para esses a lei. Mas para os que como eu defendem um diálogo franco entre a sociedade e a história só me resta pedir um armistício. Hastear uma bandeira branca para que possamos conjuntamente em meio às nossas mais divergentes percepções da vida em sociedade, formularmos uma pergunta simples que deriva do latim e do famigerado Império Romano: cui bono? A quem interessa? Ora, percebam aqui que sem ironia nenhuma acredito que podemos discordar e oferecer as mais variadas soluções para a nossa condição material e espiritual enquanto povo e nação, mas não vejo possível tamanha margem para diferenças tão profundas quando se trata de constatarmos a nossa real condição.

Então o retorno à pergunta fundamental parece-me apontar irrefutavelmente para uma direção: os suspeitos imperialistas de sempre são os interessados em novos espólios brasileiros para arrefecer os efeitos da crise que os assolara com muito mais força do que pudemos sentir já a partir de 2008.

Guerra Híbrida: transportar para a micropolítica das relações cotidianas a lógica militar. Inimigos ou aliados e nada mais. A máxima daquele mesmo imperialismo romano nunca deixou de vigorar: dividir para conquistar. E tudo isso permeado pelo declínio da crítica, que só permitiu-nos enquanto sociedade, dialogar com aqueles que confirmam nossas próprias teses, ignorando e até mesmo repelindo o mínimo vestígio de racionalidade que ameace nossas crenças, sem perceber que agindo dessa maneira também nos renegamos a refletir. Pensar por si mesmo requer nunca abrir mão de refletir diante dos acontecimentos e de ser capaz de formular e receber críticas sobre nossas posições no mundo, porque as pessoas e o mundo são cambiantes. Por isso o prefixo “re” na palavra refletir. É mais que uma faculdade, uma postura que deve ser adotada diante dos fenômenos que envolve o fazer novamente, o reforço e eventualmente o retorno. Não podemos simplesmente abrir mão disso sem nos transformarmos imediatamente em verdadeiros papagaios de pirata.

Em suma, é preciso dessacralizar ídolos e ideologias. Nas artes, na política, na religião, na história e nas nossas relações cotidianas, para que possamos finalmente criticá-las como se deve. Com o maior respeito que só a maior franqueza é capaz de conferir a uma reflexão e ao objeto ou pessoa refletida, seja ela qual for. Por isso defender a crítica como nossa aliada sempre. Porque é preciso saber lidar com o contraditório e só teses e percepções muito bem construídas e embasadas são capazes de resistir às críticas e consequentemente elevá-las, elevando à reboque todo o nível do debate social que anda terrivelmente rebaixado em todas as esferas da vida pública e privada. Afinal de contas, o bom amigo não é justamente aquele que te assinala que seu nariz está escorrendo, que uma casca de feijão ficou presa entre a sua gengiva e seu dente ou que você já bebeu demais e está começando a dar vexame? Façamos dessa a simples metáfora da importância da crítica nas nossas vidas.

E no caso de você eventualmente odiar a conceituação marxista de luta de classes, motor da história, entre tantos outros, devo dizer que a realidade não superou os mesmos para que deixem de ter validade. Inclusive o bilionário imperialista humanitário Warren Buffet quando perguntado se acreditava na tal luta de classes, respondeu: “Claro que há luta de classes e nós estamos vencendo. ” É aquela coisa, você pode até não acreditar no Diabo, mas ele acredita em você.

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