Eu não sou escritor

Diegho Salles de Brito
4 min readMar 3, 2021

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Ser ou não ser escritor. O que, afinal, atesta e valida alguém como escritor? O que é necessário viver e não viver para sê-lo? Por quanto tempo pode perdurar esse limbo até que a coisa se decida? Até que não restem mais dúvidas acerca do dilema?

Tela “Angelus Novus” de Paul Klee.

Eu que tantas vezes tenho confundido vocação e vaidade sinto mais próximo o peso do veredicto que sobre mim se abaterá. Que me seja dado não lembrar na hora do vaticínio derradeiro, que sou eu mesmo quem o proferirá. E que serei eu mesmo a recorrer uma vez mais ou a silenciar em definitivo minha pena.

Convenço-me mais humilde a cada ciclo interrompido de buscas fracassadas. A cada grande história que eu afinal não sei contar. Cada tentativa irrealizada esconde uma leitura a menos. Não adianta, nem todos têm o dom. Nem todos sabem o tom. Para contar uma boa história é preciso ter ouvido muitas e lido todas. Os tagarelas como eu não têm chance. Escrever é tarefa para pessoas silenciosas, que ouvem muito e leem tudo. Para escrever boas histórias é preciso inteligência suficiente para não cair em tentação discursiva, desviar-se das armadilhas dos falsos dilemas que se fabricam aos montes e da tergiversação inútil sobre ninharias que acabam por consumir nossas horas à fio.

Acima de tudo isso existe algo ainda pior para assombrar a alma hesitante do escritor não concretizado: boas histórias não bastam. E talvez seja por isso mesmo que eu não consiga escrever, que eu não me conclua em nada, provavelmente por isso um eterno começador e recomeçador. Porque talvez eu seja capaz de boas histórias, mas boas histórias não bastam.

Eu que acusei abertamente a onda autodeclaratória de escritores surgidos nos últimos dez ou quinze anos de charlatães. Eu que cuspi bílis sobre aquilo que julguei sumariamente como patéticos diários expostos. Eu que caí atirando contra o turbilhão de inutilidades que só serviram para soterrar a verdadeira literatura, agora me encolho procurando pelos meus outrora roxos culhões. Não maldigo Paulo Coelho e Augusto Cury. Não porque eles não mereçam, mas simplesmente porque isso não faria eu me sentir melhor. Não me faria escrever uma história genial. Eu talvez não deva mesmo escrever. Nem mesmo tentar. Nem mesmo ter esperanças de poder quem sabe vir a querer tentar novamente um dia. Eu que tantas vezes disse que era preciso envelhecer um pouco antes de um homem poder usar bigodes com alguma dignidade. Antes de poder escrever uma única história que preste. Eu não me iludo mais com o tempo. Não será suficiente. Não será suficiente para presenciar e ouvir tudo. Para ler tudo. O tempo está contra o devir dos ainda não realizados escritores que boiam à deriva no oceano das histórias geniais. Pelo menos hoje eu não me pavoneio mais, sei que estou à deriva. Sei que uma pérola não se fabrica numa ostra sã. Hoje não ostento o semblante risível de todo otimista irrefletido. Também não me iludo de meu realismo trágico recém conquistado. Não sou nenhum Maiakovski, não inventei nenhuma roda ou rifle poético. Não há heroísmo algum em mim ou nos meus pares, ou mesmo naqueles que eu pretensiosamente elejo meus pares. Olha que eles são bons, alguns são realmente muito bons e se o tempo não lhes for cruel ao extremo como tem sido com todos nós, ainda se provarão geniais. Mas heroísmo não há. Neste quadrante da história humana em que provavelmente a maior quantidade de pessoas já coexistiu sobre a face da terra se estende um imenso deserto de heróis. E quando pela boa sorte que às vezes me visita nas miríades do desalento, eu enveredo pela trilha das almas nunca domadas, me deparo com um labirinto de gênios tristes que sabem perfeitamente habitar um tempo insensível aos seus alertas. Que se afogam na agonia da revelação da verdade para os adoradores da ilusão. A verdade não se apresenta para estes como línguas de fogo lambendo os céus do Juízo Final. Ela aparece na forma de muitos corpos mutilados dos quais as almas não se descarnaram para o descanso eterno, porque fustigadas ainda aguardam pela coragem dos coveiros e dos heróis, dos arqueólogos e dos xamãs que irão redimi-la ante aos olhos de todos. Os que a terra há de comer e os infinitamente mais numerosos que ela já devorou. As legiões de injustiçados que se amontoam sob o nosso esquecimento coletivamente cultivado pelos milênios.

Então não escrevo mais. Isso não é um conto, não é uma crônica. Não é um desabafo nem um diário destrancado. É para os escritores que ainda não sabem contar as histórias que já nasceram consigo. Os inflexivelmente comprometidos com a verdade. Os que sabem do transtorno que ela sempre causa quando emerge, que sabem que por baixo da casca em putrefação é que escondem a fagulha redentora que revelada anunciará o batismo dos heróis hoje em torpor. Eu sei que já maldisse os heróis tantas vezes, mas eles são necessários, mais do que nunca necessários e isso não tem que ver com hollywood, glamour ou admiração. Isso tem a ver com sujar as mãos. E para escrever uma única boa história que seja, é preciso saber sujar as mãos.

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