Procuram-se artistas

Diegho Salles de Brito
3 min readFeb 1, 2021

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Um dia um artista acreditou que sua obra dependia das redes e plataformas digitais para alcançar seus fãs e que essas seriam usadas como simples ferramentas por ele. E como tudo é numerado, quantificado e posto em gráficos, parece sério, parece acima de qualquer suspeita, as pessoas escrevem lá na caixa de comentários, interagem entre si, com o artista e se te xingam dá pra apagar, bloquear, excluir, cancelar. Imagina! Tem gente mesmo que ganha muita grana assim, sendo xingado em milhares de comentários. É uma ferramenta maravilhosa que trabalha pro artista que trabalha pra ferramenta que alimenta os fãs que alimentam esse sentimento no artista que produz mais para que o fã fique mais tempo consumindo esse produto, digo arte! E tudo acontece tão engenhosamente que até parece que não é por isso que o artista começou a fazer paródias de obras primas com assuntos mesquinhos, parece até que não é por isso que o artista topa falar de qualquer coisa que a plataforma diga que é assunto, a ferramenta serve pra isso, ela tá ali a seu serviço bicho! Ela te dá tudo tão de bandeja assim que os artistas foram todos um a um aderindo incondicionalmente às plataformas porque suas obras dependiam delas para existir e os artistas foram virando ferramentas da ferramenta. Porque tem que ser rápido, conteúdo conteúdo conteúdo! Mesmo que seja só forma, só fórmula, só reprodução. O artista hoje tem que ser empreendedor, não tem essa de prazo, de tempo, de inspiração, de deixar na gaveta pra ver se sobrevive, não tem desculpa, você tem o mapa da mina do sucesso nas mãos, faixa etária, gênero, regiões, religiões, projeções e o escambau! Só não arrebenta quem não quer! E foi assim que a arte morreu para a humanidade de um certo tempo. Mas eles não se deram conta por muitos e longos anos. Continuaram seus grandes negócios de visualizações e propagandas como se fosse a mais verdadeira arte, nunca se viu uma equipe de publicidade tão engajada e feliz com a interpretação desproporcional que fazia de si mesma. Morreu soterrada por memes que vai falar a verdade, não tem como não achar graça né?!

Até que um dia uma mãe foi vista não se sabe se no Recôncavo baiano, se no agreste da Paraíba ou se numa ladeira de Minas, cantando para ninar uma criança de colo.

“Nana neném que a cuca vem pegar

Mamãe foi pra roça

Papai foi trabalhar…”

Uma lavadeira e um menino descalço que detestavam propaganda ouviram atentos, pararam de esfregar e de correr pra ouvir, se achegaram em volta daquela mãe que embalava seu neném. Ela achou graça disso, contou pra eles que sua avó havia lhe ensinado uma porção dessas cantiguinhas que ela jurou eram sonífero remédio para a criança. Cantou porção delas pra eles, outras pessoas aumentaram a roda. Tomaram gosto por esse hábito. O menino descalço um dia confessou entre encabulado e reluzente que tinha aprumado ele também uns versinhos bobos, como quem diz querendo mostrar muito mais que esconder. As coisas tornaram a recomeçar. Foi assim. Eu mesmo queria ter nascido nesse tempo depois do apocalipse criativo. Quem sabe não poderia ter sido eu aquela criança embalada. Quem sabe eu não podia ter sido um velho que sobrou com suas memórias quase todas intactas. Viver esse triste fim só pra recomeçar tudo de novo como se nunca antes tivesse havido o antes. Todas as possibilidades. Mas eu fui um dos que perderam. Eu estive até o fim contra a submissão da arte, contra as trevas sobre a imaginação humana. Eu fui derrotado. Também amei o folclore e detestei propagandas.

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